domingo, 14 de dezembro de 2014

O Caramujo, romance histórico (5/18), introducção


INTRODUCÇÃO



Pinheiro dos Frades, Cova da Piedade, ed. desc.
Imagem: A árvore do centenário

Quem sae da quinta dos Frades, na Outra-Banda, e segue a estrada para o norte, vae ter a um lindo valle, a que chamam Cova da Piedade, ficando-lhe da esquerda, na correnteza das casas, aquella onde está a aula de instrucção primaria, e a taberna da tia Libania, e da direita a capella real de Nossa Senhora da Piedade, fundada em 1762, e que deu o nome ao valle e á povoação que n'elle existe.

Era este o caminho que n'uma manhã de março de 1831 seguia o contra-mestre de navios mercantes, Joaquim de Jesus, por alcunha Espanta-maridos, montado n'um jumento de aluguel, d'aquelles que a toda a hora se encontram na praia de Cacilhas, e seguido de um rapazinho de pé descalço.

A alcunha foi-lhe posta por ter salvado uma pobre mulher, que o marido queria deitar da janella abaixo. Gritava ella que lhe acudissem, e toda a gente em alaridos, sem o brutal marido desistir, até que os brados e a expressiva mimica de Joaquim de Jesus lhe fizeram largar a presa.

Já se vê que o epitheto não era devido a motivos desfavoraveis para o contra-mestre.

Chegou Espanta-maridos á porta da tia Libania, e tendo-se apeado, saudou-a como antigo conhecimento, e tratou de reparar as forças com uma boa porção de conserva de cenouras, pão, queijo e vinho.

Em quanto se entretinha d'este modo, viu passar ao longe um joven official do 4 de infanteria, montado n'um dos taes burros de aluguel.

[Cova da Piedade], Uma Burricada, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 14, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

— Olá, tia Libania! Conhece vocemecê o parceiro (Espanta-maridos a todos chamava parceiros), que vae montado n'aquelle gafanhoto?
— Conheço, respondeu a Libania, limpando o balcão. É o sr. Narciso Gomes, que vae para casa de Antão Diniz, onde está a minha Felizarda a servir.
— E como se vae dando por lá a pequerrucha? Nem mais ella se lembrou do rapazola que a levava a passear ao Caramujo, e lhe dava figos, e lhe pôz ao pescoço uma cruzinha de prata. A proposito, que faria vocemecê da cruzinha de prata que eu dei á pequena?
— Pergunte-lh'o a ella, que nunca mais a tirou do pescoço, e já lá vão bons dez annos.
— Ora essa diz Espanta-maridos, repotreando-se no banco, e encostando-se ao balcão.

A conversação foi interrompida de fóra por uma voz bem conhecida dos dois, que cantarolava:

Os brejeiros do Caramujo
Não fazem senão dançar.

— Oh! exclama Espanta-maridos, dando um pulo para a porta. Ou tenho pela proa o meu mestre João Chrysostomo, ou é o diabo por elle.

Ouviu-se outra vez o mesmo estribilho, e appareceu na direcção da taberna a gorda figura do sr. João Chrysostomo, trigueiro, baixo, de barba grisalha, e todo vestido de preto, traje que nunca largava.

— Com licença, disse elle ao entrar a porta, toda tomada pelo contra-mestre.
— Com licença o quê? Pois tão velho estou eu, ou o sr. João Chrysostomo tão esquecido, que já se não lembra do seu discípulo Joaquim de Jesus, por alcunha Espanta-maridos?

Chrysostomo olha fixamente Espanta-maridos e exclama:

— Pois é o senhor... Pois és tu aquelle endiabrado marinheiro, que eu ensinei a ler em pequeno, e que se foi d'aqui sem mais se saber d'elIe! Dá ca esse abraço...

E o velho abraçou o contra-mestre tão apertadamente, que este gritou:

— Basta, sr. João Chrysostomo! Obrigado! Vocemecê é sempre o mesmo bom homem de outro tempo. Mas como está acabado!
— São mais dez annos, meu Joaquim. É tu tambem já não és a creança que eu aturei, estás um rapazão… grandes barbas, grande corpanzil... um homemzarräo.

N'este momento foi a taberna invadida por uma turba-multa de tanoeiros do Caramujo, o sacristão da capella, e outros rapazes, que tendo sabido da chegada de Espanta-maridos, o procuravam para lhe darem as boas vindas.

Depois de muitos abraços e muita conversação, tudo acompanhado de boas pingas, foi pouco a pouco ficando a taberna deserta, havendo-se ajustado todos para á tardinha irem ao Pragal e Almada; e sendo horas de aula, tambem Chrysostomo se foi a ensinar os seus discípulos, ficando sós a tia Libania e o contra-mestre.

Largo e Mercado, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900

— Ó tia Libania! Como estes rapazes são meus amigos! Ha tanto tempo que me não vêem, e não se esqueceram de mim. Olhe que me pareceram um seculo os annos que andei lá por fóra. Vocemecê não sabe a tristeza que se apodera de nós quando de noite, em tempo sereno, estamos de quarto. Então é um passar e repassar pela imaginação de tudo o que nos ficou em terra, que se nos parte o coração de saudade, e damos ao diabo a vida do mar.
Mas dizia vocemecê que a Felizarda conservava a cruzinha de prata?
— E lá a tem comsigo em casa de Antão Diniz, onde se da muito bem com a familia. É boa gente aquella de Diniz… Bom velho… A mulher, D. Francisca, é uma santa senhora. E a filha… Se você a visse… a filha vae-se tomando um peixe. Borda, toca piano, e já os rapazes lhe arrastam a aza.

— Mas ainda deve de ser muito pequena?
— Qual! Tem os seus dezeseis annos, e é mocetona. Lá anda o Luiz Franco á roça, a fazer-lhe versos, a passear com ella… Talvez elle a abiche... E olhe que a pequena peza… tem riqueza… e não é nenhuma riqueza de figos...

— É bem rica, é. Mas esse Luiz Franco… não me recordo d'elle.
— É o Franco do Pragal, que está cirurgião ajudante no regimento do sr. Gomes. Cura por ahi todo o mundo, e nunca pede dinheiro. E quando lhe levam de presente alguma gallinha, leitão, ou cabrito, quasi que vae ás do cabo. Outro dia foi elle ver uma mulher aqui ao lado, e deixou-lhe um cruzado novo para os remedios.
— Ah! bem me lembro… aquelle estudantinho… Já se 'vê, é cá dos nossos. Eu sempre embirrei com cirurgiões; mas aposto que elle não e nenhum empanturrado, fallando de papo?
— Pelo contrario, falla com todos, brinca com os rapazes, toca viola franceza, dança, e olhe que apesar de tudo ninguem lhe falta ao respeito.

— Bem, bem. Não é como o cirurgião de bordo de uma corveta onde estive, que logo pela manhã parece que engulia pau de vassoura, e nunca mais o vomitava todo o dia. Tinha um forte estomago… Ás vezes engulia elle sua chufa d'aquelIas que fazem chegar a côr ao rosto, mas não lhe faziam mossa. O maldito, quando dava alguma coisa n'um marinheiro, o que sabia era mandal-o sentar e dizer-lhe: "Não é nada. Esteja com a cabeça baixa que a coisa passa." Mas uma vez fiz-lhe bater um moitão de encontro á cachola, e quando gritou, disse-lhe logo: "Não é nada, sr. doutor. Se v. s. tivesse a cabeça baixa, a coisa passava." E até o commandante se riu...
— Isto está muito mudado, disse a Libania, desde a sua partida. Morreram os paes do Franco, morreu a filha mais velha do tanoeiro Jeronymo...

— Oh coitada! exclamou Espanta-maridos. Ella tambem estava phtisica… Mas quem é esse Botelho?
— Ah você não conhece diz a tia Libania. O sr. Augusto dos Santos Botelho é lá de Lisboa. O pae era empregado na secretaria da guerra; veio aqui tomar ares e morreu, e a mãe pouco depois. O filho ficou no emprego do pae. É visita do sr. Antão Diniz, assim como o sr. Gomes, que ainda agora passou para o Caramujo. O sr. Gomes foi da marinha de guerra, depois passou para a tropa de terra. É filho da sra. D. Rosa, de Mutella, viuva de um official, antigo companheiro do sr. Diniz, e que morreu no Brazil.
— Conheço, diz Espanta-maridos. Foi elle quem me levou para bordo. Fizemos ambos uma viagem aos Açores, e depois nunca mais o lobriguei. Mudou de vida e fez bem, que não é boa a do mar. Heide ver se lhe fallo logo.

— Mas esse Botelho é algum figurão?
— O sr. Botelho, continuou a tia Libania, vive em grande luxo e gasta muito. Não se sabe d'onde lhe vem tanto dinheiro, porque tem ordenado pequeno, e o pae não lhe deixou nada. Eu não gosto muito do tal sr. Botelho. Tem uns ares de quem faz pouco caso da gente pobre, e a minha Felizarda embirra com elle, mais com o sr. Gomes, que ora está muito alegre, ora é um cabisbaixo e um semsaborão. Não é assim o sr. Franco; é outro homem, um bello moço.

Entrada do Jardim, Cova da Piedade, ed. desc., década de 1900

E n'estas conversações se foi passando o tempo, desenferrujando a lingua a tia Libania, contando a Espanta-maridos a vida das pessoas do seu conhecimento, que ella mui hem sabia, até que appareceu novamente João Chrysostomo.

— Ó Joaquim, disse elle, entrando na taberna, cá está o teu velho professor. Acabo de impor os rapazes. Disse-lhes que tinha chegado um antigo discipulo, que não via ha annos. Custou-me hoje a tel-os quietos. Estiveram sempre a badalar sobre o collegio que a sra. infanta vae estabelecer em Almada.

— Qual d'ellas? diz Espanta-maridos.
— A sra. D. Maria d'Assumpção, respondeu João Chrysostomo. D. Francisca, que foi aia da infanta, metteu-lhe isto na cabeça, a infanta approvou, e estão já tratando de comprar a casa.
O collegio é para internos e externos. Internos hão de ser os orphãos de pae e mãe até á edade de 7 annos, e em passando d`esta edade vão para a casa pia de Lisboa. E os externos serão pequenos pobres, desde os 4 annos até aos 7. E admitte até 100 creanças. Deus abençõe a sra. infanta e a familia de Antão Diniz por tal lembrança. Olhe, tia Libania, se já existisse o collegio não estavam as suas pequenas a fazer uma algazarra que ninguem se entende.

Effectivamente as sobrinhas da Libania cantarolavam á porta:

Quando o rei chegou á barra,
Nova moda se inventou:
Quanto mais a fome aperta,
Mais se canta "O rei chegou."

Era a lettra da canção que amofinava João Chrysostomo.

A tia Libania deu grandes gargalhadas e disse:

— O sr. João Chrysostomo é boa pessoa, tem só o defeito de não ser do nosso systema.
— Ah sr. professor! Pois vocemecê gosta das cores azul e encarnada! observou Espanta-maridos com o tom mais amavel que sabia tomar.
— Mau! Diz Chrysostomo zangado. Quem lhe manda cá metter o seu bedelho, tia Libania! Tambem você tem systema! Era melhor que fosse ensinar o Padre Nosso a suas sobrinhas.

E saiu da taberna precipitadamente, sem attender ás desculpas de Espanta-maridos, e ralhando com as pequenas.

— É muito aferrado ao arrocho, disse a Libania. Mas todos o estimam, porque é muito serviçal. Faz todo o bem que póde, e nunca faz mal a ninguem.


Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.

2 comentários:

Luis Eme disse...

graças a si, tenho uma cópia deste romance (emprestada...) em casa.

embora ainda anão o tenha começado a ler a sério, também me deliciei com o seu início, com o "Espanta-maridos" (faz falta nestes tempos...).

é bom vir ao seu "museu", aprende-se sempre mais qualquer coisa, Rui.

Rui Granadeiro disse...

Obrigado Luis.
Tenho apreciado alguns dos trabalhos que tem vindo a publicar, e que ainda nāo tive oportunidade de ler na íntegra...
quanto ao Caramujo penso te-lo em linha na totalidade até 18 de dezembro
Um abraço