sexta-feira, 24 de julho de 2015

Os dias 23 e 24 de julho de 1833 (parte II)

Cartas portuguezas*

Cova da Piedade, 23 de outubro [de 1886]

Sabe-se o que durante a noite de 23 para 24 se passou em Lisboa. 

Aqueduto das águas livres, ponte e ribeira de Alcântara, século XIX.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Um dos meus vizinhos da Cova da Piedade é o Sr. Ahrends, presentemente engenheiro da companhia do gaz, e descendente de uma familia da Pomerania, que em 1833 habitava no alto de Campolide um predio de tres andares. A familia Ahrends ocupava o segundo andar. No primeiro morava uma familia de realistas. No terceiro viviam refugiados, quasi escondidos, tres malhados.

Os realistas do andar de baixo tinham perfeito conhecimento da heterodoxia dos principios vigentes no andar da cima. mas fingiam ignoral-o, por uma especie de tacito accordo de inquilinagem amiga e de hospitalidade sagrada sob o abrigo das mesmas telhas.

O Sr. Ahrands, que a esse tempo era uma criança, com seis ou oito annos de idade, nunca mais esqueceu e tem bem presentes os episodios caseiros d'essa noite memoravel, da qual ainda hontem o ouvi fallar, sentado ao luar n'um banco do jardim da Piedade, a que o anno passado a camara municipal de Almada deu o nomo de largo do Duque da Terceira.

Na casa dos Ahrands, que na sua qualidade de pacificos allemães mantinham uma absoluta neutralidade na questão debatida em Portugal pela guerra civil, ninguem dormiu na noite de 23 para 24 de Julho de 1833. 

O que quer que fosse de extraordinario parecia passar-se no predio de Campolide. No primeiro andar, onde de ordinario se recebiam visitas e se conversava até tarde. não se ouvia o minimo rumor. No terceiro andar, onde geralmente a familia se recolhia o immobilizava desde o cair da noite, estavam todos a pé, e havia um constante reboliço de passos que iam e vinham, e de janellas que sucessivamente se abriam e fechavam.

Pouco depois da meia-noite começou-se a ouvir na rua, sobre as pedras da calcada, o pesado rodar de carroças, que umas depois das outras sahiam as portas, na direcção de Bemfica.

Os Ahrands, que vieram olhar da janella, viram até de manhã passar carros cheios de moveis, de bagagens e de gente, famillias inteiras de burguezes, homens, mulheres, crianças e principalmente frades de varios habitos, uns encapuxados no alto da carga das carretas, outros eacarranchados em burros, outros a pé.

Um dos malhados do terceiro andar, antes de romper o dia, desceu ousadamente á rua, e tomou o caminho de Lisboa. 

Durante toda a noite, por cima de Cacilhas se viu o céu avermelhado, n'um rubor d'aurora, pelo clarão das fogueiras. 

Lisbon from the Rua de San Miguel, Drawn by Lt. Col. Batty, 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Ás 7 horas da manhã do dia 24, o malhado de Campolide que fora de noite á cidade, voltava n'uma carruagem a galope, para levar os companheiros. A parelha da sege tinha adornadas as cabeçadas de topes de fita azul e branca, semelhantes ao que o boleeiro igualmente pregara na copa do chapéu. 

Os que leram a chronicas do tempo, ou que folhearam os cinco volumes da interessante Historia da guerra civil e do estabelecimento do regimen parlamentar em Portugal, dada ao prelo pelo Sr. Simão José da Luz Soriano, sabem que estranho effeito produziu no governo de Lisboa a noticia da jornada da Piedade.

Entre os realistas que conseguiram embarcar e atravessar o Tejo, contava-se o proprio filho de Telles Jordão, que acompanhava seu pai na qualidade de ajudante de ordens e o vira morrer aos seus proprios olhos, no caes de Cacilhas.

O duque do Cadaval, reunindo por volta da meia noite um conselho militar, resolveu desde logo desocupar Lisboa. Pouco tempo depois retiravam as guardas dos fortes das margens de Tejo e das estações de policia, e de madrugada, depois de reunidos no campo Grande, sob pretexto de uma revista, todos os regimentos da guarnição miguelista, oito a dez mil homens, partiam pela estrada de Loures, abandonando a capital.

Lisbon from the chapel hill of Nossa Senhora do Monte, Drawn by Lt. Col. Batty, 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Ás 4 horas da manhã, um grupo de catraieiros do Caes do Sodré, provocados pelo alfaiate Antonio Joaquim Governo, e logo secundados por alguns operarios que se dirigiam para o arsenal, levantaram os primeiros vivas á rainha e á Carta. Animado pela impunidade da primeira berrata, o grupo de Antonio Joaquim, que desde logo se encarregou de capitanear, tomou as armas e as bagagens de alguns soldados realistas, que essa hora passavam no Corpo Santo, dirigindo-se á revista do Campo Grande. 

Pouco depois, o Antonio Joaquim e a sua gente desarmaram igualmente a guarda que ainda então se conservava no arsenal de marinha. Tendo percorrido varias ruas da Baixa, e augmentando progressivamente de numero, porque não havia policia nem tropa para fazer dispersar, os populares foram ao Limoeiro o abriram as portas aos presos que alli jaziam, e entre os quaes se encontravam muitos homen politicos, alem dos tres que estavam no oratorio para serem suppliciados nesse dia.

Foi com os populares a que me refiro, e com cerca de cinco mil homens saidos das cadeias de Lisboa e rapidamente armados no arsenal do exercito, que a revolução rebentou.

Os burguezes, logistas, funccionarios, proprietarios, capitalistas, commerciantes — então, como sempre, ticios, calculadores o medrosos, ficaram prudentemente em suas casas. Foi depois de divulgada a noticia de que o exercito de Cadaval desoccupara a cidade, foi depois de verem pelos seus olhos a bandeira azul e branca hasteada no castello de S. Jorge, como em todas as fortalezas da cidade, saudada pelos navios surtos no Tejo, que a população "sensata" de Lisboa, que essa illustre parte da população, a si mesmo chamada por excellencia a "sociedade", é tão util á salvaguarda e á manutenção da ordem, quanto remissa em arriscar a pele, se resolveu emfim a sahir á rua e a sancionar com o seu beneplacito o facto consumado pela canalha amotinada e pelo populacho infrene.

Vista oriental de Lisboa tomada do jardim de S. Pedro de Alcântara, 1844.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Então se encheram as ruas de muitos homens denodados e ardentes, caminhando em triumpho bellicoso, procurando por toda a parte o perigo, para terem a gloria de o arrostar com uma bravura immensa, á qual apenas se poderia oppor o leve defeito de chegar um pouco depois do momento em que era util.

O castello de Almada, bem guarnecido e bem artilhado, só na manhã do dia 24 cahiu em poder dos constitucionalistas. Na noite de 23, depois da occupação de Cacilhas, o duque da Terceira mandou ao castello um parlamentario, que os realistas mataram a tiro, antes de o deixar aproximar da fortaleza.

Tem-se geralmente escrito que esse parlamentario era o filho do general Schwalback. Não é exacto. O filho de Schwalback, João Pedro Schwalback, mais tarde general elle mesmo e commandante das guardas municipaes de Lisboa, era amigo intimo do jovem official assassinado, o qual, ao esperar em Cacilhas, lhe confiou o annel que traria no dedo, que João Pedro se encarregou de entregar á noiva do seu desditoso camarada. 

Quando, no dia 24, o duque da Terceira atacou o castello, o governador, que vira tremular a bandeira azul e branca em todas as eminencias te Lisboa, julgou inutil para a causa realista persistir na resistencia, e todos os homens da guarnição que ainda não tinham fugido com muitos outros para Trataria, se renderam ao vencedor.

Para se assenhorear de Almada, o duque da Terceira quasi não teve mais trabalho que o de arvorar a bandeira, em signal de que todo o resto do perigo desapparecera com o inimigo dos fortes da outra banda.

As pessoas mais gradas do partido constitucional em Lisboa partiram desde esse momento ousadamente para Cacilhas.

Innumeros botes empavezados com as córes da victoria começaram a sulcar o tejo rutilante de sol; por toda a parte se ouviam musicas marciaes, canticos patrioticos, vivas enthusiasticos, tiros de regosijo. 

Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, 1830.
Imagem: Wikimedia

Das duas para as tres horas da tarde, o duque da Terceira com os 1500 bravos a sua heróica expedição partia em lanchas e em faluas, do pontão de Cacilhas para o caes do Sodré, entre a mais luzida flotilha de pequenas embarcações embandeiradas e floridas.

Conta-se que em todo o caes o illustre general não chegara a pôr os pés no solo, porque os habitantes o levaram nos hombros em triumpho, até aos paços municipaes.

No mesmo dia 24 chegava á barra a esquadra de Napier, que os ventos pauteiros do norte retardaram na costa do Algarve, impedindo-a de acompanhar a marcha do duque da Terceira. O almirante, acompanhado do duque de Palmela, subiu o Tejo num escaler, até ao arsenal de marinha, no meio de ovações pouco inferiores aquellas de que foi objecto o duque da Terceira. A não ser quatro dias depois, quando o imperador velo do Porto a bordo do Jorge IV, e, depois de haver chorado de commocão, na festa fluvial, arrojou a espada que trazia á cinta ao entrar em Lisboa, por entender que estava para sempre assegurada a paz e a concordia entre a familia portugueza, nunca anteriormente se vira, nem depois se tonou a ver um regosijo igual.

Tão sómente convêm notar, que no dia 25, horas depois da entrada triumphal do duque da Terceira, em Lisboa, uma festa analoga se fazia era Setubal, para o fim de celebrar, não a victoria da causa liberal, mas a da causa opposta.

As auctoridades, civis e militares, nomeadas dois dias antes por occasião da passagem do duque da Terceira, abandonaram velozmente a cidade, apenas presentirarn a approximação do exercito de Mollelos, e a entrada victoriosa do general realista produziu um enthusiasmo illimitado.

Setubal, Castello de S. Filippe, século XIX.
Imagem: In-Libris

Repicaram os sinos, estrondearam as salvas de artilharia, dadas pelos cidadãos no castello de S. Felippo, encheram-se da mais completa multidão as ruas, as janellas, os telhados das casas e por toda a parte se humedeciam os olhos, agitavam-se lenços, palpitavam desfraldadas as bandeiras encarnadas, e eram geraes e unissonos os vivas á religião, ao rei D. Miguel e ao bravo visconde de Mollelos.

Onde diremos que verdadeiramente estivesse a victoria das idéas? Ai de mim! Eu, francamente, creio que ella não estava em parte alguma. Na guerra de então, como na paz de hoje em dia, os principios eram para a grande maioria dos individuos um pretexto vago, abstracto, extremamente confuso.

Hoje concorda-se na politica por interesses combinados. Então discordava-se por interesses offendidos. E eis ahi a differença das praticas nas duas ultimas gerações da sociedade portugueza, cujo fundo philosophico é absolutamente identico. 

Quem fiar unicamente da importancia das idéas o exito do uma causa, está mal para chegar ao triumpho. O que preciso, é não collocar a opinião senão depois de preparado o facto.

Entre a batalha da Piedade e a chegada a Cacilhas, o duque da Terceira definiu bem as cousas por meio de uma simples phrase, que ainda se não escreveu, e que é preciso registar na historia do constitucionalismo.

Mutela na enseada da Cova da Piedade (detalhe da vista de Cacilhas e de S. Julião), Charles Landseer, 1825.
Imagem: Instituto Moreira Salles

Na subida da Muttela,os moradores do sitio vieram á estrada e ás portas das casas saudar com vivas a triumphante expedição liberal. O duque, passando a custo por meio da multidão clamorosa e enthusiastica, inclinando-se sobre o arção da sella, estendendo a mão direita aberta n'um gesto de pacificação, observava com bonhomia:

— Não se compromettam, meus senhores não se compromettam por emquanto, porque ainda se não sabe quem venceu!


* Reservando-se o direito de reedição, o auctor d'este artigo roga aos seus confrades da imprensa portuguesa o obséquio de o não transcreverem.

Ramalho Ortigão (1)


(1) Gazeta de Noticias, 20 de dezembro de 1886

Artigos relacionados:
O Caramujo, romance histórico
Guerras Liberais

Leitura relacionada:
Zan, João Carlos, Ramalho Ortigão e o Brasil, São Paulo, Universidade de S. Paulo, 2009

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