sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A muleta de pesca, por A. A. Baldaque da Silva

Um desenho bem simples e genuinamente portuguez: A muleta de pesca, deslisando á superficie das aguas, desfralda ao vento as ponteagudas vélas e deixa ver a seu bordo os arrojados tripulantes, ao longe descobre-se a linha da terra, e no ultimo plano accumulam-se os tons da atmosphera.

Muleta junto ao Cabo da Roca, João Pedrozo (1825-1890).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Quantas idéas, porém, desperta este singelo quadro a quem sobre elle attenta!

Ilustração de Rafael Monleón y Torres (1840-1900).
Imagem: Hemeroteca Digital

O barco, como assumpto principal, representado no seu conjuncto pelo casco, leme, mastro, vergas, cabos e vélas, synthetisa a arte nautica, que arrancou ao engenho humano um domicilio e um meio de transporte no vasto liquido que cobre o globo, assegurando a existencia e o isolamento d'aquelles que lhe confiam as suas vidas;

o mar, elemento magestoso e profundo, repleto de mysterios e tempestades, lança no espirito de quem o contempla uma preoccupação vaga, mistura de receios e encantos, que provoca á meditação;

os pescadores, nas suas melancholicas attitudes, fazem recordar as desoladas familias, que deixaram nos lares em afervorada prece, unico amparo que lhes fortifica os animos; a terra, ao longe, aviva a saudade, conduzindo á reminiscencia do passado;

e a atmosphera limita o pensamento, não permittindo sondar o espaço indefinido, que a imaginação intenta traspassar, em poderoso vôo.

D'esta multidão de idéas associadas e impressões commoventes, resulta um amplo quadro, delineado em um sem numero de motivos, que o tornam complexo e grandioso.

Já o mar, impellido pelo vento, encrespa a superficie; monticulos de plumbeas vagas, recortadas por franjas de branca espuma, balouçam a muleta, que completamente alagam, fustigando ao mesmo tempo os tripulantes, que ensopam até á medula.

O aspecto carregado do céu atemorisa os pescadores; ouvem o ranger do apparelho, sibilando gemidos que entibiam os animos; e, ora fortalecidos pela experiencia de longos annos, ora sobresaltados pela lembrança das mães, mulheres e filhos, que ficam ao desamparo, proseguem na dura faina.

Entra a vaga com furia, destruindo a borda; rasga-se a véla grande; está o barco desmastreado; pesada nuvem despejou em catadupas a abundante agua que transportava; exgotam á força de braços energicos e possantes o liquido que faz adornar a muleta; desenrascam o mastro e a véla, e aguardam serenamente o destino que a providencia divina lhes reserva.

Mas, já descobre o céu velho, tinto de azul escuro, velado, em grande parte, pelos vapores esbranquiçados que correm suspensos no ar. Um primeiro raio do sol, e, em seguida, todo o feixe luminoso, bate em cheio no maravilhoso quadro, illuminando os tons, aquecendo as côres, e dando vida e alento aos tripulantes. 

O vento amainou; a ondulação vae diminuindo pouco a pouco de amplitude; os pescadores sacodem os encharcados fatos, e preparam o mastro e o panno. Já verdeja a collina e rescende o perfume da vegetação marginal; as mães riem para os filhos, que fazem saltar nos braços, e os pobres operarios do mar sentem nova vida invadir-lhes o endurecido organismo.

Muleta no rio Tejo, Luis Ascêncio Tomasini,  1881.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Entre os variados typos de embarcações portuguezas, possue certamente um original sabor artistico a "muleta" usada pelos pescadores do Seixal e do Barreiro, para o lançamento da muito antiga rede de arrastar a reboque pelo fundo, denominada "tartaranha".

A muleta tem o fundo largo e chato; a proa, excessivamente boleada, remata em arrufado be-que; a popa, muito inclinada, recua em cima; caracteristicos estes que, juntos ao grande amassa-mento dos flancos, dão ao casco o aspecto de uma tosca naveta normanda do seculo XIII.

Ilustração de Rafael Monleón y Torres (1840-1900).
Imagem: Hemeroteca Digital

O apparelho da muleta compõe-se de um mastro, muito inclinado para vante, onde iça a verga de uma véla grande triangular, latina, e de dois compridos paus, denominados batelós, deitados pela proa e pela popa, que servem para amurar e caçar as outras vélas, e, ao mesmo tempo, para nas extremidades amarrarem os cabos que seguram a rede, quando esta funcciona.

Ilustração de Rafael Monleón y Torres (1840-1900).
Imagem: Hemeroteca Digital

Á ré, caça no extremo do batelós um triangulo, que iça na penna da véla grande, denominado varredoura de cima, e, por baixo, outro, a varredoura de baixo; e em estaes que vão da cabeça do mastro pai:a a roda de proa e para o batelós de vante, içam umas seis a sete pequenas vélas, chamadas toldos, muldins, varredoura e cozinheira, que, segundo o seu numero, compensam o effeito das vélas de ré, quando a embarcação se mantem atravessada, durante a pesca.

As muletas largam a rede proximo da emboccadura do Tejo, no começo da enchente, e, mareando o panno, vão caindo ao longo da costa da Trafaria e margém do sul, montando o pontal de Cacilhas e continuando a derivar pelo Mar da Palha, até terem completado o lance, recolhendo então a rede, e apanhando o peixe que vem no sacco.

Uma fragata inglesa de través frente à margem sul do Tejo com pequenas embarcações nas proximidades, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Outras vezes, arrastam fóra da barra, desde o largo até á enseada de Entre Cabos. Este typo de embarcações vae acabando, a ponto de actualmente existirem apenas duas. Tem sido substituido pelos modernos bateis, que pescam pelo mesmo systema.

No museu de archeologia naval de París, ha um modelo reduzido da nossa muleta, que o ministerio da marinha offereceu áquelle estabelecimento; e mais dois outros modelos figuram nas collecções da escola naval, e do museu marítimo da escola industrial Pedro Nunes, de Faro.

Muleta, modelo da Escola Naval que pertenceu ao Museu de Marinha (1896).
Imagem: Internet Archive

A rede tartaranha, empregada pela muleta, consta de um sacco com malha muito miuda, alargando para o lado da bôcca, onde ligam duas bandas de rede, muito compridas e estreitas, na extremidade das quaes amarram os cabos que sustentam o apparelho dentro de agua, e que recebem o nome de alares.

O sacco tem duas costuras convergentes, prendendo a face de cima á de baixo, formando uma garganta afunilada e dois cantos triangulares, denominados beliches, onde o peixe se accumula sem poder sair, na occasião de suspender a rede. A tartaranha constitue uma variedade muito notavel das artes de arrastar, sendo em Portugal unicamente empregada pelos pescadores do Seixal e do Barreiro.

Velame do bote-da-tartaranha: 1. Varredora de cima; 2. Varredora de baixo; 3. Grande; 4. Pano da vara; 5. Polaca; 6. Varredora da proa; 7. Cozinheira; 8. Cozinheira; 9. Toldo.
Imagem: Maria Lucia De Nicolò, Tartane cf. E. Curtinhal, Barcos, memórias do Tejo, Ecomuseu Municipal do Seixal 2007

Imagine-se este phantasma colossal, com o enorme ventre dilatado, a bôcca escancarada, os braços estendidos, movendo-se no abysmo oceanico, engulindo milhares de seres differentes, e esmagando, com o pesado corpo, tudo que encontra na sua devastadora digressão pelo fundo.

A acção destruidora deste gigantesco engenho do mal exerce-se sobre a vegetação submarina; sobre os ovulos e germens das mais preciosas especies, que nas plantas encontram auxilio para o seu desenvolvimento embryonario; sobre a fauna e flora, que servem de alimento ás especies novas e adultas; e sobre a propria colheita, que, na maior parte, fica inutil para qualquer applicação proveitosa.

O damno causado por estas redes, tem dado logar á promulgação de diversas medidas repressivas do seu exercicio, desde 9 de abril de 1615, data do primeiro alvará que as prohibiu por tempo de oito annos, para favorecer os pescadores do alto, da cidade de Lisboa, contra os que pescavam com as ditas redes, procurando remediar a falta de pescado, que attribuiam ao uso das tartaranhas. 

E, como a arte, na sua progressiva evolução, nem sempre dá resultados beneficos, acontece que este systema de exploração dos seres que habitam as aguas, se tornou ainda mais nocivo com o emprego da navegação a vapor no arrastamento do immenso sacco, imprimindo-lhe maior velocidade e intensidade de acção, motivo por que o decreto de 30 de julho de 1891, confirmando a previsão do velho alvará, estendeu a prohibição ao moderno arrastão, rebocado pelos vapores de pesca.

A muleta de pesca, pela sua fórma exquisita e pittoresca, e pelo gosto artistico que revela, tem sido representada em modelos, desenhos, gravuras e aguarellas, merecendo a predilecção de muitos admiradores da sua belleza, entre os quaes se contam o finado Rei D. Luiz, El-Rei D. Carlos, o almirante Páris [François Edmond Pâris (1806-1893)], Pedroso, Pinto Basto, Camacho, Vaz, Casanova, o auctor destas linhas, e o sr. R. Monleon [Rafael Monleón y Torres], de quem são os bellos desenhos que acompanham este artigo, e que representam as mais minuciosas particularidades do casco, apparelho, velame e accessorios, da muleta.

Marinha, Muleta, D. Carlos de Bragança.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Que bellas applicações se podem fazer da muleta de pesca na ourivesaria, na ceramica, na tapeçaria, e em muitas outras artes uteis e decorativas!

A fórma do seu casco dá esplendidamente, imitada em porcelana ou barro, uma admiravel terrina ou saladeira, e um elegante centro de mesa ou floreira, com especial aspecto maritimo, genuinamente portuguez. Em marmore, pôde modelar-se com ella um lindo tanque ou baptisterio, de puro estilo nautico nacional. Tem desusada e significativa applicaçáo o desenho da muleta no lavor central de um tapete, alcatifa ou cortinado. Em oiro, prata, bronze ou ferro, ou pela combinação e entrelaçamento d'estes me-taes, quantos objectos de arte se podem conseguir com a fórma ou delineamento geral da muleta de pesca?!

Ilustração de Rafael Monleón y Torres (1840-1900).
Imagem: Hemeroteca Digital

Carecemos tanto de um estylo genuinamente caracteristico da nossa feição especial de povo de navegadores, cheio de tradições maritimas, perpetuadas em poemas sublimes e monumentos grandiosos, que é forçoso reunir, e methodisar em formulas praticas, os elementos simples e as concepções geraes, que devem orientar o nosso gosto artistico na composição dos productos da industria nacional. 

A arte portugueza não pôde desenvolver-se sem conseguir este desideratum.

Campolide, 16 de março de 1895 (1)


(1) A. A. Baldaque da Silva, Muleta de pesca, Arte Portugueza n.° 5, 5 de Maio de 1895

Artigo relacionado:
Jimmy Green's, a muleta do Tejo

Informação relacionada:
Fernando Gomes Pedrosa, A Muleta e a Tartaranha (séculos XV-XX)

Maria Lucia De Nicolò, Tartane

Leitura relacionada:
Léopold Folin, Bateaux et Navires (...), Paris, J.-B. Baillière et fils, 1892

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